Ébola. Milhares de amostras viajaram sem controle para Europa e EUA

O jornal Le Monde obteve dados, ainda não publicados, pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que indicam que foram colhidas quase 269.000 amostras de sangue nos três países – Serra Leoa, Libéria e Guiné - afetados pela epidemia. Do total, 24.000 amostras indicaram a presença do vírus.

A Serra Leoa relatou 151 mil amostras, a Libéria 71 mil e a Guiné-Conacri 47 mil, detalha o jornal, tendo a maioria das amostras sido analisada no local por equipas chegadas da Europa, Estados Unidos, Canadá, China e Rússia. Coletadas inicialmente para fins de diagnóstico, as amostras constituem para os cientistas uma riqueza de informações sobre o ébola.

“O vírus evolui ao longo do tempo, e se sim, como? De que modo modifica os parâmetros biológicos de uma pessoa infetada? A resposta imunitária dos sobreviventes de 2016 é a mesma da dos sobreviventes de 1976?”, questiona o investigador John Dye, do Instituto de Investigação Médica de Doenças Infeciosas, braço do exército norte-americano que luta contra a propagação de vírus.

Nem todas estas amostras foram exportadas e, por outro lado, perdeu-se o rasto a grande parte das amostras num cenário de emergência médica.As autoridades da Guiné-Conacri, Serra Leoa e Libéria aprovaram as exportações, mas admitem que nem sempre sabem o que acontece com as amostras.

Após a realização das análises, muitos cientistas guardaram as amostras mais interessantes para as estudarem posteriormente. "A Guiné era uma peneira", descreve Michel Blanchot, antigo farmacêutico do exército francês e que ajudou a organizar laboratórios na Guiné-Conacri. “Os aviões das Nações Unidas que transportavam equipamento médico e equipas aterravam em qualquer lugar, fora do controle da alfândega, fora do controle da polícia, fora de qualquer controle. Naquelas condições não era possível proteger as amostras. Foi a confusão total”, descreveu ao Le Monde, admitindo que as amostras podiam até ter sido transportadas em simples malas ou pelo correio, podendo até terem sido destruídas.

No rasto das amostras do ébolaDe acordo com o Le Monde, regressaram 1.373 amostras amostras à Guiné-Conacri, vindas do Centro de Controlo de Doenças e Prevenção em Atlanta, nos Estados Unidos, encontrando-se agora no laboratório nacional das febres hemorrágicas.

A mesma agência encarregada da saúde pública nos Estados Unidos, que chegou a testar 26 mil amostras na Serra Leoa, confirmou ter transportado "várias centenas", mas até agora a sua exploração não oteve acordo das autoridades do país. O jornal refere ainda que estão armazenadas no Instituto nacional para a pesquisa biomédica da Monróvia, capital da Libéria, cerca de cinco mil amostras. Estas foram enviadas para Fort Detrick, no Estado de Maryland, onde tem sede um dos mais importantes centros de investigação em biodefesa dos Estados Unidos, que partilha as instalações com os Institutos Nacionais de Saúde e o já referido Instituto de Investigação Médica de Doenças Infeciosas.



“Inicialmente, catalogámos as amostras para criar um biobanco na Libéria para que as futuras gerações pudessem conduzir pesquisas sobre a epidemia, mas o Departamento de Estado, por motivos de segurança, preferiu transferi-las para os Estados Unidos para desativá-las", afirma Randal Schoepp, especialista em febre hemorrágica e que, em 2014, ajudou a criar um centro de diagnóstico do ébola na Libéria.

O Instituto Bernhard-Nocht, em Hamburgo, abriga uma das maiores coleções de amostras de vírus, milhares das quais provenientes da Guiné e Serra Leoa. Refere o Le Monde que cerca de 6.500 amostras recolhidas na Guiné-Conacri foram transferidas para o instituto alemão sem dados clínicos sobre os pacientes.

"Nós não classificámos todos", afirmou Stephan Günther, acrescentando que este "tesouro - que pode ser útil dentro de 10 ou 20 anos - permanece propriedade da Guiné e será devolvido assim que o país tiver infra-estrutura adequada", lê-se no Le Monde.
Falta autorização dos pacientes e garantia de anonimato
O consórcio EMLab, em Lyon, alberga outros milhares de amostras. “Tivemos luz verde da comissão de ética da Guiné e do Instituto Pasteur (em Macenta), mas isso demorou muito tempo porque não tínhamos o consentimento dos pacientes”, declarou o investigador Sylvain Baize.

Para que as amostras possam ser reutilizadas para fins de pesquisa “devemos voltar a contactar os pacientes, a menos que se prove que tal não é possível”, explica Virginia Pirard, diretora de ética do Instituto Pasteur.

De acordo com o Artigo 32 da Declaração de Helsínquia, que desde 1964 regulamenta a pesquisa biomédica, apenas as “comissões de ética nacionais nos países afetados pela epidemia podem anular a ausência de consentimento e dar a concordância”.

Além da falta de consentimento, o anonimato dos doentes também não está garantido. Na Serra Leoa, os números de identificação usados para "codificar" as amostras também constam dos certificados de cura de quem resistiu ao vírus, apurou o Le Monde.

De acordo com o jornal, os números, que começam todos com um "G", são listados nas bases de dados publicadas na internet pelos investigadores, possibilitando a identificação dos pacientes.

O responsável do departamento de Febres Hemorrágicas Virais da Organização Mundial da Saúde, Pierre Formenty, considera que “não é normal” esta falta de respeito pelo anonimato dos pacientes. "Ser capaz de identificar pacientes a partir de detalhes epidemiológicos ou dados laboratoriais infelizmente não é incomum em artigos científicos", comenta.
Diplomacia do sangue

Especialistas de todo o mundo entraram numa competição feroz para obter as amostras, com o intuito de serem os primeiros a fazer achados e a anunciar as eventuais conclusões, mas também para beneficiar dos 400 milhões de euros que Estados e organizações internacionais libertaram para investigação médica.



“Havia muita concorrência e os países afetados pelo ébola não estavam em posição de dizer não, porque tinham necessidade de ajuda para controlar a epidemia”, explicou Eric Delaporte, do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento em Montpellier.

As instituições de pesquisa desdobraram-se em contactos com os países que estavam a viver um cenário de crise humanitária, com “uma verdadeira diplomacia de sangue” estabelecida, com o intuito de desenvolver novas formas de diagnóstico, criar novos medicamentos e vacinas contra o vírus.

Muitos envios foram formais, envolvendo a Europa e os ministérios da saúde da Guiné-Conacri, Serra Leoa e Libéria.

"Houve acordos bilaterais aos quais eu não tive acesso", disse Pierre Formenty, admitindo ainda que não foi informado sobre dos procedimentos nos Estados Unidos.

"As nossas prioridades eram a velocidade e a fiabilidade dos diagnósticos", declarou Michel Blanchot.

A Organização Mundial da Saúde tentou fazer um inventário às amostras de sangue, mas nunca foi concluído. A ideia de criar um biobanco para também caiu no esquecimento.

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