José Maria Neves lembra da experiência contra epidemias de dengue e zica e considera que o país vai também vencer pandemia de Covid - 19
Cheguei em casa cansado, lera vários
sumários executivos, a epidemia estava em crescendo, tinham sido confirmados
dois óbitos, se não me falha a memória, e pessoas, já aflitas e preocupadas,
demonstravam algum medo.
Nesse dia, ao sair do Gabinete, ligara ao
meu amigo Ivinho convidando-lhe para jantar, estava esgotado e com vontade de
comer um polvo grelhado. Combinamos encontrar-nos às nove no Benfica,
Palmarejo. Tomei um duche rápido para recompor as energias e saí para o jantar,
que, afinal, acabou por não acontecer. Pedimos polvo, como acordado, mas antes
de chegar, de repente senti os sintomas - havia já panfletos, banners e
anúncios nos principais órgãos de comunicação social a indicar os sintomas e a
forma como as pessoas deviam proceder - e fomos para a casa.
Chamei imediatamente um médico, que me
observou e confirmou o que tinha anunciado ao Ivinho. Pronto, fiquei em casa,
com muitas dores de cabeça, febre alta, um grande desconforto e falta de
apetite. Perdi vários quilos, porém recuperei-me bem, apesar do medo que senti
em alguns momentos mais tensos. Dengue pode não matar, mas mói. Dolorosamente.
E mostrou ao Chefe do Governo, democraticamente, como é.
Uma semana depois já estava a trabalhar,
ainda que meio debilitado. Não havia tempo a perder, tínhamos uma epidemia pela
frente, inédita, insubmissa e implacável, provocada por um maldito mosquito,
cujo nome fixei desde essa altura, aedes aegypti. Fiquei a saber que só as
fêmeas picam para amadurecerem os ovos. Picam, sugam o sangue e cospem uma
saliva para não serem notadas e assim sugarem o máximo que puderem.
Sofisticação e maldade.
Em Setembro de 2009, apareceram os
primeiros doentes. Mas dengue era desconhecida entre nós e não foi
imediatamente diagnosticada pelos médicos. Face à persistência dos sintomas e à
quantidade de pessoas infetadas, pôs-se, então, a possibilidade de ser dengue.
As primeiras amostras recolhidas e enviadas a Dacar, Instituto Pasteur,
confirmaram as suspeitas. Estávamos já em Outubro e a notícia caiu como uma
bomba.
Basílio Ramos, então Ministro da Saúde,
telefonou-me para me dizer que sim, era dengue e tínhamos que tomar medidas.
Apesar de ter estudado no Brasil, nunca
ouvira falar de tal maldita doença, nem dos mecanismos de transmissão, não
sabia nada de nada!
Pedi informações e dados, e ao final da
tarde tinha já os principais elementos para decidir. Impunha-se celeridade,
capacidade operacional e eficiência na execução.
Decidimos pela criação imediata de uma
Comissão Interministerial de Luta Anti-vetorial, presidida pelo Primeiro
Ministro, para definir estratégias e coordenar o combate. Foram
disponibilizados recursos orçamentais e mobilizados cerca de 400 mil euros,
para além de equipamentos e medicamentos de vários parceiros internacionais.
Chegaram apoia imediatos da OMS, União Europeia, PNUD, UNICEF, Cruz Vermelha
Internacional, Médicos Sem Fronteira, Holanda, Luxemburgo e Espanha e equipas
médicas de Portugal, França, Brasil, e especialistas da Tailândia e da
Martinica. Lembro-me do Doutor K. Mansinho, do Instituto da Médico Tropical de
Portugal, quem me visitou ainda em casa para uma demorada conversa, muito
instrutiva, sobre a dengue e a epidemia que atingira Cabo Verde. De Cuba chegou
uma equipa de luta anti vetorial e do Senegal uma equipa para análises
clínicas. O Laboratório foi instalado em tempo record e as análises passaram a
ser feitas no país.
Apesar da nossa recomendação em contrário,
os médicos franceses trouxeram hospitais de campanha. Quando chegaram ficaram
surpreendidos com as condições criadas - tínhamos inaugurado cinco novos
Centros de Saúde na Praia -, pelo que decidiram abandonar as tendas
trazidas e montar a base no Centro de Achada Santo António.
Quando as primeiras equipas chegaram
constataram o profissionalismo e até algum excesso de zelo dos médicos e
enfermeiros caboverdianos. Todos os que chegavam com sintomas eram
hospitalizados. Recomendaram então que não, só deviam ficar internados os casos
mais graves e os outros poderiam ser acompanhados em casa.
O NOSI desenvolveu um sistema de
acompanhamento eletrônico dos doentes em casa, que funcionou muito bem e foi
elogiado pela OMS e pelos especialistas internacionais.
No dia 06 de Novembro o país parou. Face ao
alastramento da doença, o Governo convocou a nação para uma campanha nacional
contra o mosquito transmissor da dengue. A adesão foi massiva. Limpamos as
Ilhas, debelamos os focos de transmissão e invertemos a tendência da curva.
As Forças Armadas deram um contributo
inestimável, mobilizando-se para dar um decisivo combate ao vetor transmissor.
Todas as forças vivas levantaram-se para defender a Pátria ameaçada.
Por isso, em 2011, através da Resolução
n.14, de 07 de Março, o Conselho de Ministros instituiu 06 de Novembro como o
Dia da Defesa Nacional.
Ainda tivemos a ameaça da Ébola (2013), que
se alastrara nos países vizinhos, principalmente Senegal, Guiné Conakry e
Gâmbia. Imediatamente suspendemos as ligações aéreas com todos os países
afetados, tendo havido algum descontentamento por parte do Presidente Senegalês,
Macky Sall.
Em finais de 2014, mais uma erupção
vulcânica na Ilha do Fogo. Destruição total do povoado de Chã das Caldeiras,
perto de mil desalojados. Realojamento das pessoas, cestas básicas,
reabilitação das casas em Achada Furna e Monte Largo... custaram milhões aos
cofres do Estado.
Mais uma vez contamos com um forte apoio da
comunidade internacional. Angola e a União Europeia deram apoios
significativos.
Num ano pré eleitoral, apesar de todas as
medidas tomadas, contrariamente ao que tinha acontecido com a Dengue, a erupção
foi politizada ao extremo, prejudicando os esforços do Governo para a
reconstrução da Ilha.
Chegou-se a fazer um Fórum Internacional
para a Reconstrução da Ilha, foi determinada a construção de um novo centro
urbano em Achada Furna, com todas as infraestruturas, desde habitações, a
igrejas, escolas, jardins e placas desportivas, e a elaboração de um plano
detalhado para a reocupação de Chã das Caldeiras. O novo Governo que saiu das
eleições de 2016 fez legitimamente outras opções. Espero que dê tudo certo.
Em 2015, tivemos a epidemia do Zica.
Do ponto de vista político-governamental
são momentos importantes de aprendizagem.
Pessoalmente aprendi muito. Basílio Ramos
(2003-2011) e Cristina Fontes Lima (2011-2016), Ministros da Saúde nesses
tempos mais difíceis, foram inexcedíveis. Basílio perdeu tanto peso, que todos
lhe perguntavam se tinha apanhado dengue.
Tempos de combate, de engajamento cívico,
de engrandecimento da nação.1
Confiante estou, pois, em como, juntos,
unidos e engajados, conseguiremos debelar mais esta pandemia, que nos tem
atingido ferozmente.
José Maria Pereira Neves
( ex -Primeiro - ministro de Cabo Verde)