Primeiro campo de concentração em Cabo Verde à espera de ser museu
Em entrevista à agência Lusa, o presidente da Câmara Municipal de Tarrafal de São Nicolau, José Freitas, admitiu que o projeto para conservar e musealizar o que resta da estrutura que em 1931 foi construído nos arredores da localidade, então para receber os deportados políticos da revolução da Madeira, já tem alguns anos, mas há finalmente garantia de financiamento, pelo Fundo do Turismo, com o apoio do Instituto do Património Cultural (IPC).
“Uma vez que temos a parte histórica, vamos redimensionar o projeto e já temos uma garantia, não o montante em si, mas já temos a garantia do Fundo do Turismo que será financiado”, afirmou.
O objetivo é replicar e explicar alguma da história ali vivida há quase cem anos, num campo de concentração que funcionou durante um ano e meio, até dezembro de 1932, e que esteve na génese da posterior construção do campo de concentração em Tarrafal, ilha de Santiago - o qual por sua vez funcionou até 1974 e por onde passaram presos políticos portugueses e das várias colónias.
“Vamos fazer alguma réplica do espaço que existia no campo de concentração, para que possamos torná-lo uma atração turística. Fica a memória de pessoas e do campo, antes de passar para o campo de concentração do Tarrafal de Santiago”, acrescentou o autarca, recordando que este é, de resto, o motivo da germinação entre os dois municípios Tarrafal, de São Nicolau e de Santiago.
“Este ano nós podemos garantir que vamos ter o projeto pronto juntamente com o IPC e ver o financiamento através do Fundo do Turismo”, garantiu José Freitas.
Em conversa com a Lusa, o historiador José Cabral, de São Nicolau e que passou praticamente metade dos seus quase 60 anos a investigar a instalação naquela ilha do presídio para os deportados políticos da revolução da Madeira, inicialmente instalado no seminário da ilha e depois partilhado com o campo de concentração nos arredores da vila do Tarrafal, lamentou o desinteresse, até hoje, em conservar a memória do que ali aconteceu.
“Ao fim de tantos anos, o espaço está na mesma”, observou, recordando a importância, partilhada por outros estudiosos do tema, de São Nicolau no início do regime ditatorial português. Aquela ilha cabo-verdiana, após a revolta da Madeira, serviu como “experimento do novo modelo prisional” do regime, que até então via as ilhas “como o degredo”. “Esse modelo passa de ilha prisão para prisão na ilha”, recorda, sobre a escolha de São Nicolau.
Após maio de 1931 começaram a chegar a São Nicolau os deportados portugueses, instalados no então Seminário-Liceu na vila de Ribeira Brava, outra das localidades da ilha: “Vieram várias levas e o espaço não coube. Foi-se edificar de raiz um campo de concentração em Tarrafal de São Nicolau, que eram pré-fabricados de madeira, de origem alemã”.
O historiador recorda que o primeiro campo de concentração em Cabo Verde resistiu pouco tempo, mas no decreto de criação da colónia penal em Tarrafal de Santiago, o campo de concentração que acabou por funcionar até ao fim da ditadura em Portugal, estava “expressamente dito” que era para recorrer ao “material utilizado na tentativa de instalação do campo de concentração de São Nicolau”. Pelo que essas casernas, cujas marcas das fundações ainda podem ser reconhecidas em São Nicolau, foram desmontadas e transportadas para Santiago.
Cabo Verde recebeu na altura, estima, cerca de 400 deportados políticos da revolução na Madeira, muitos dos quais militares portugueses condecorados da I Guerra Mundial, que foi rapidamente abafada pelo regime, metade dos quais foram concentrados em São Nicolau.
Durante cerca de um ano e meio o seminário, em Ribeira Brava, e o campo de concentração, em Tarrafal, funcionaram como presídio para esses deportados na ilha de São Nicolau.
“Um campo de concentração que foi violentíssimo. Era um regime terrível, houve mortes”, explica o historiador, alegando o levantamento que realizou ao longo dos anos, nomeadamente pela consulta de certidões de óbito.
“Muitos com tuberculose e que eram deixados ali”, aponta ainda.
O campo enfrentou então problemas logísticos, com mais de uma centena de homens ali encarcerados, sem condições básicas, pelo que poucos meses depois, antes ainda da construção do campo em Tarrafal de Santiago, os deportados voltaram ao regime da ilha como prisão, confinados a São Nicolau.
O campo de concentração desapareceu tão rapidamente como surgiu em São Nicolau, depois de o regime português decretar uma amnistia em 05 de dezembro de 1932, embora a maioria proibida de sair da ilha. Os presos de então envolveram-se com a população local, muitos dos quais constituindo famílias, mudando a vida daquela ilha, em termos sociais e culturais.
“Estamos perante uma história profunda, interessantíssima da lusofonia e do regime salazarista, que é pouco conhecida”, lamenta José Cabral, apelando a que após décadas de espera o antigo campo seja finalmente conservado e musealizado, preservando a história e potenciando turisticamente o local.
A Semana com Lusa