José Maria Neves aborda experiências acumuladas do país contra epidemias, endemias e pandemias que são úteis em tempos do Covid -19

A NOSSA BANDEIRA

“ Os primeiros casos de cólera surgiram nos casebres de Fonte de Barril, lá para os lados da Galé... passados poucos dias o mal estendia-se para outros bairros, Ribeira Bote, Fonte de Inez, Monte Sossego, Fernando Pau... já não havia onde acamar os coléricos. O Dr. Vicente teve uma ideia. Requisitou as instalações da PIDE, agora vagas, para transferir para ali duas enfermarias de doentes comuns, afim de arranjar espaço no hospital para as vítimas da epidemia”.

Assim escreveu Teixeira de Sousa no seu romance Entre Duas Bandeiras, que aborda o período de transição que vai do 25 de Abril de 1974 a 5 de Julho de 1975. Tempos de grandes sobressaltos, de escarniçadas lutas entre facções políticas diferentes pró e contra a independência, pró e contra a unidade Guiné-Cabo Verde...

É nesse contexto de ferrenha disputa política que surge a cólera em São Vicente, combatida com sucesso, graças à determinação férrea do Dr. Vicente, aliás, Teixeira de Sousa, então Delegado de Saúde em São Vicente, que teve de enfrentar greves dos serventes do hospital, oposição política e contestações de rua.

Num comentário ao meu texto de ontem, que se refere a experiências que tive enquanto Chefe do Governo na batalha contra epidemias e desastres naturais, Mário Matos dá-nos conta da epidemia da cólera nos primeiros anos pós independência e a mobilização social que suscitou o seu combate.

Tenho presente a epidemia da Cólera nos anos 90 e o aceso debate entre o Governo do MPD e o principal partido da oposição na altura, o PAICV, sobre as medidas de política para combater o surto.

Há dias, a 04 de Abril de 2020, o Jornal a Nação (versão online) publicava uma reportagem com o Combatente da Liberdade da Pátria, Honório Chantre, que se referia à Gripe Asiática (1956-58) e que afetou as ilhas de São Vicente, São Nicolau e Santo Antão. “A razia foi tal que o Reitor Baltasar Lopes da Silva mandou suspender as aulas por 15 dias”, salientou Chantre. Ele mesmo foi contagiado e ficou curado graças ao Dr. José Duarte Fonseca, que lhe receitou seis comprimidos de clorafinicol, remédio já irradiado pela OMS, e o mandou confinar-se em Santo Antão.

Nos seus comentários nas redes sociais, amiúde, Eurico Pinto Monteiro também tem feito referências à Gripe Asiática. Essa pandemia que atingiu Cabo Verde, em finais da década de 50, começou na China, alastrou-se por mar e terra pelo mundo e matou cerca de 2 milhões de pessoas. Não tenho dados se houve ou não mortes nas ilhas afetadas.

No seu livro “História da Medicina em Cabo Verde” (1987, ICLD - Praia, Cabo Verde), o Dr. Santa Rita Vieira relata pormenorizadamente as medidas tomadas, na década de 50, para combater as doenças infectocontagiosas. Descreve, por exemplo, a entrada da varíola pelo Porto da Praia, em Outubro de 1950, “trazida pelos serviçais, em número de 1300, repatriados de Angola pelo vapor Luanda” e as medidas tendentes “a evitar a entrada na Colónia de Cabo Verde, de doenças infectocontagiosas, nomeadamente a febre amarela, não só pelos seus portos, como ainda pelos aeródromos”.

Em 1955, ainda segundo Santa Rita Vieira, é empossada a Missão Permanente de Estudo e Combate às Endemias de Cabo Verde, integrada pelo Dr. Manuel Torquato Viana de Meira (Médico Chefe), Dr. Henrique Teixeira de Sousa (Médico Adjunto) e Manuel de Abreu Coutinho (Preparador). Em 1963, passou a designar-se Missão para a Erradicação do Paludismo.

No seu volumoso livro, mais de 800 páginas, o Dr. Santa Rita Vieira descreve minuosiamente as campanhas sanitárias com DDT, as de erradicação da malária e outras doenças infectocontagiosas na década de sessenta.

Isto tudo para mostrar que o país tem experiências muito bem sucedidas de combate às epidemias, endemias e pandemias que remontam, aliás, da época colonial.

A história das políticas públicas neste domínio em Cabo Verde é um poderoso instrumento de trabalho no presente e no futuro.

Estou ainda a pesquisar se a Gripe Espanhola (1918-1920), que matou cerca de 100 milhões de pessoas, chegou a Cabo Verde, e que impacto teve.

As capacidades institucionais acumuladas ao longo dos anos permitem-nos ser otimistas em como estaremos mais uma vez à altura dos desafios que se nos colocam enquanto país, em tempos da pandemia do Covid -19.

Não sabemos ainda quando termina. Talvez tenhamos de conviver com o vírus por um longo período.

A melhor resposta continua a ser o reforço da nossa capacidade de resiliência individual e coletiva e a ação responsável de cada um.

Trata-se, pois, de uma questão eminentemente cívica.

De aí a importância da educação para a cidadania, que deve ser desencadeada de forma articulada a todos os níveis por todos os atores relevantes nesse processo.

E todos são chamados a dar a sua quota parte, órgãos de soberania, partidos políticos, Igrejas, sindicatos, patronato, organizações não governamentais, associações de desenvolvimento comunitário, enfim os cidadãos deste país.

A nossa bandeira nessa luta e as nossas cores são as de Cabo Verde.

José Maria Pereira Neves
( ex - Primeiro -ministro de Cabo Verde)

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